Fotografias & Histórias de Montanha

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Por lameiros e baldios


Caminho de acesso aos lameiros, Barroso


F/6.3
1/400 seg.
6 mm
ISO-100



Localizada num extenso planalto, numa zona de transição entre as Serras da Cabreira e Barroso, a cosmopolita Vila de Salto (Montalegre), é um dos exemplos da curiosa simbiose entre o homem e a natureza. Neste pitoresco recanto transmontano, a paisagem foi moldada de uma forma ordeira e harmoniosa.
Enquanto percorríamos a calçada de granito do velho núcleo rural, alguns dos exemplares da antiquíssima arquitectura rural transmontana iam surgindo ao virar de cada esquina. Casas senhoriais, velhos cruzeiros revestidos por líquenes, fontes seculares, currais cobertos por telhados de colmo, são, entre muitas outras,  algumas das relíquias que aqui podemos encontrar. Mas a arte e o engenho dos homens não se focou exclusivamente no interior das povoações. Por toda a parte é possível observar quilómetros e quilómetros de rectângulos viçosos, debruados em socalcos suaves e delimitados por muros de pedra sobreposta.
Os lameiros são o fruto de anos de experiência acumulada e da necessidade de alimentar o gado doméstico nos gélidos meses de Inverno. Caminhar no interior dos lameiros é como percorrer uma espécie de labirinto. Um sem fim de velhos caminhos que se cruzam vezes sem conta e que, invariavelmente, acabam por ligar as casas e os campos ao bosque de carvalhos, que, por sua vez, segue até às zonas de baldio, utilizadas nos tórridos meses de Verão como local de pastagem.
Seguindo por um desses caminhos, dirigimo-nos ao encontro do flamejante planalto serrano. A paisagem, aqui, encontra-se praticamente despida, com poucas ou nenhumas árvores, coberta predominantemente por extensos matos de urze e carqueja. O calor tornava-se por esta altura abrasador, quase insuportável. Felizmente, o trilho dirigia-se ao encontro de um pequeno ribeiro, que a jusante era engolido por um frondoso bosque de bétulas. Não só estávamos protegidos do sol pelas copas das árvores, como ainda  tivemos a sorte de deleitarmo-nos com uma ligeira brisa que trespassada por entre a folhagem dos ramos, inundava o  local de uma doce e suave frescura. E, claro, com o ribeiro a rasgar aquele pequeno paraíso, não resistimos à tentação de descalçar as botas e  pôr de molho os nossos pés! Mas como ainda tínhamos alguns quilómetros pela frente, tivemos forçosamente que voltar a calçar as botas e continuar o nosso caminho.
Acabamos por chegar ao fim do dia bastante fatigados e com as pernas já bem moídas. No entanto, as dores do corpo eram facilmente suportáveis pela satisfação do momento, depois de longas horas e muitos quilómetros de puro deleite, desta vez, por lameiros e baldios.


Texto e fotografia © Baltasar Rocha (Todos os direitos reservados)


terça-feira, 28 de junho de 2022

Onde está Wally?

 

A misteriosa escultura do Índio da Cabreira, Serra da Cabreira


Detalhes do registo fotográfico:
F/4
1/125 seg.
9 mm
ISO-100
Câmara Panasonic Lumix DMC-FZ8



As expectativas para o dia não podiam ser piores. Durante a viagem de carro fomos brindados com uma descomunal descarga de chuva durante todo o percurso. E chegados à aldeia das Torrinheiras, em Cabeceiras de Basto, ela continuava. Timidamente, saímos do carro e fomos tirando a tralha para fora (polainas, ponchos, impermeáveis...). Frio, vento, chuva... Foda-se!!! Saímos da aldeia sem sequer ter a oportunidade de observar o típico casario serrano, edificado com granito da região, em pequenos aglomerados habitacionais de tipo concentrado, tal era o nevoeiro cerrado que não permitia ver mais do que meia dúzia de metros em redor.
Tomando um antigo caminho rural que liga a aldeia a um pequeno conjunto de lameiros localizados no sopé do cume das Torrinheiras (1191m), entramos na planura serrana da Cabreira Barrosã. Apesar de o nevoeiro continuar a esconder as montanhas em redor de nós, a chuva ia caindo com menor intensidade, o que contribuiu para reforçar um pouco o optimismo em relação ao estado do tempo para o resto do dia. Esporadicamente, já usufruíamos de vistas parciais da paisagem serrana, cuja vegetação é composta essencialmente por matos rasteiros, sendo notório o uso intensivo do solo por parte dos pastores locais, dada a abundância de pasto natural que ali podemos encontrar. Foi também por esta altura que deparamo-nos com um cenário macabro: uma carcaça de um garrano adulto, morto recentemente, completamente desfeita e dispersa pelo chão. Aliás, ao longo do dia deparamo-nos com pelo menos mais duas carcaças, para além dos já habituais indícios da presença de lobo (pegadas, dejectos), o que pressupõe que os lobos da região têm andado bastante activos nos últimos tempos, apesar de perseguidos e odiados pelos pastores locais.
Continuando por um trilho de pé posto, iniciamos a descida até ao Vale da Ribeira de Lamas do Miro. Assim que chegamos ao local, demos início a um jogo que nos fez transportar para a saudosa e já longínqua infância: o incontornável "Onde está Wally?". A ideia era simples: Cada um por si, deveria procurar por entre as rochas do local, a face do misterioso Índio da Cabreira. Trata-se, na realidade, de uma escultura cravada na rocha, onde é perfeitamente visível a face de um índio. Mas quem terá sido, afinal de contas, o escultor de semelhante obra? Algum pastor? Não creio. Terá sido um montanheiro? Não me parece. A hipótese mais provável é que talvez tenha sido um hippie, provavelmente um membro da Rainbow Family. O sítio onde se encontra a escultura coincide com o local de concentração de um acampamento que decorre de tempos a tempos naquela zona remota da Serra da Cabreira, e que reúne várias centenas, ou até alguns milhares de hippies, vindos sobretudo da Península Ibérica e de várias partes do continente europeu.
Depois de encontrado e fotografado o nosso Wally, havia chegado a altura de encontrar um local para almoçar. Avistamos uma pequena clareira, no meio de um denso bosque. Decidimos que seria o local perfeito para almoçar. A clareira permitia que de vez em quando os tímidos raios de sol entrassem, aquecendo o local... e nós também! No regresso à aldeia, ainda aproveitamos para dar uma saltada ao Curral da Serra da Maçã, onde alguns bovinos pastavam, juntamente com uma numerosa família de garranos. Já em relação aos lobos, como é natural, não avistamos nenhum! Mas se há algo que um montanheiro vai aprendendo ao longo do tempo, enquanto calcorreia as serranias nortenhas, é que não é necessário o seu avistamento para saber que eles (ainda) por aqui andam. Mais do que qualquer outro animal, são precisamente os lobos, esses seres míticos e lendários, que vão preservando a identidade daquilo que um dia já fomos: selvagens e livres.


Texto e fotografia © Baltasar Rocha (Todos os direitos reservados)